sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Assistência Judiciária

Assistência judiciária: de quem é o dinheiro?
Enquanto as entidades sobem o tom das críticas mútuas na queda de braço da crise da Assistência Judiciária, muitas dúvidas ainda não foram esclarecidas no "novo" modelo de assistência judiciária em prática em São Paulo  
Tito Bernardi

Enquanto a OAB SP exibe no portal da entidade uma entrevista em vídeo de seu presidente, Luiz Flávio Borges D´Urso, com duras críticas à "intransigência" da Defensoria Pública, a Associação Nacional dos Defensores Públicos – ANADEP - divulgou nota à imprensa classificando o convênio de assistência judiciária de São Paulo de "improvisação" e "experiência anômala". Ao mesmo tempo em que sobe o tom das críticas e acusações de parte a parte, o Governo de São Paulo continua fora das discussões. Da Assembléia Legislativa, ao melhor estilo de omissão e "blindagem" a qualquer tema sobre as responsabilidades do Poder Executivo paulista, não há sinais de que o assunto possa constituir uma prioridade para os deputados estaduais.

Mas, somente agora, duas semanas depois do início da crise, aparecem os primeiros sinais do que move a disputa. A "briga", ao que tudo indica, parece ser para ver quem vai dar a palavra final sobre como e onde gastar os recursos orçamentários para assegurar a assistência judiciária à população carente de São Paulo.

Do lado dos defensores, parece que houve um súbito interesse pela preservação dos "princípios da moralidade e da legalidade".

Os defensores clamam por mais concursos públicos para a contratação de novos colegas que possam absorver todo o atendimento à população carente em 360 comarcas. Asseguram que, com 1.600 defensores públicos, a situação estaria resolvida. E não precisariam mais do auxílio de 47 mil advogados do convênio, nem da estrutura de apoio dos 313 pontos de atendimento da OAB.

Ocorre, entretanto, que não é essa a realidade que se apresenta. O que a Defensoria Pública fez de concreto foi publicar um edital bastante discutível, em que pretende impor a advogados, desvinculados do órgão de classe, condições de trabalho e remuneração aviltantes. No edital não está previsto nenhum concurso público. O que se coloca em prática é um arremedo do "antiquado convênio".

Os advogados que ingressarem no sistema de trabalho da Defensoria Pública não terão o apoio da estrutura mantida pela OAB. Em muitas cidades do interior de São Paulo, não é novidade que a OAB mantém instalações com melhor estrutura até que muitos órgãos do Estado. Sem o apoio da Ordem, os advogados terão de arcar com todos os ônus do atendimento - telefone, sala de atendimento, papel, cópias xerox, etc - e não terão o auxílio de funcionários que fazem o "meio campo" com juízes, funcionários dos fóruns e assistidos, muitos assistidos.

Mas isso não seria a estrutura de qualquer advogado para atender clientes? - perguntaria qualquer leitor desavisado. Na realidade de penúria material da assistência judiciária, porém, as contas são outras porque o advogado recebe valores muito abaixo do previsto na tabela comum sugerida pela OAB. Pelo convênio, um advogado recebe, em média R$ 500,00 por processos que se arrastam em média por cinco anos. Nos cálculos de Luiz Flávio Borges D´Urso, presidente da OAB, isso representa R$ 100,00 por ano e menos de R$ 10,00 por mês. "São desses R$ 10,00, que só receberá no futuro incerto, é que o advogado devera retirar os recursos para custear telefonemas, papel, tinta, energia, cópias xerox, etc.", calcula.

Em muitas cidades do interior, esse custo é também suportado pela OAB, pois o atendimento é feito nas salas e Casas de Advogados mantidas pela OAB. Quem freqüenta as comarcas do interior, sobretudo nas cidades menores, esquecidas pelo Estado omisso e inoperante, sabe que os valorosos funcionários da OAB atendem bem a todos, sem as limitações causadas pela crônica desorganização do funcionalismo público. Com o edital, essa possibilidade apoio ao trabalho do advogado desaparecerá. Sai a estrutura da OAB, e o que a Defensoria oferece a advogados e assistidos em quase 300 pontos de atendimento?

Na guerra de números, há quem defenda a tese de que existe no orçamento da Defensoria dinheiro para poder suprir tudo. Existiria no orçamento da Defensoria Pública uma "folga orçamentária" para a realização de mais concursos. Em São Paulo não existem vagas, mas existe orçamento para contratar mais defensores.

A Defensoria Pública de São Paulo assegura que foi aprovado no início de julho o Plano Plurianual do Estado de São Paulo, que prevê a criação de 400 cargos nos próximos quatro anos. Serão criados 100 cargos por  ano. A instituição informou que "já está em contato com o governo do Estado para o envio de projeto de lei à Assembléia Legislativa".
Isso significa dizer que existe a possibilidade de criação de novos cargos. Mas os cargos ainda não foram criados. Não há nem sequer Projeto de Lei ou qualquer discussão iniciada na Assembléia Legislativa, a sucursal da ilha da fantasia quando se trata de temas relacionados a Justiça e Cidadania em nosso Estado. 

Admitindo-se que existe dinheiro para a contratação de 1600 defensores, porque, então serão criados apenas mais 400 cargos? Somados com os menos de 400 atualmente em atividade efetiva, teremos menos de 800 defensores daqui a quatro anos - porque serão criados 100 cargos por ano. Seguindo pela trilha do que a Defensoria considera ideal para o atendimento a todo o estado - 1200 defensores - faltariam, ainda 400 defensores. Como seria feito para cobrir o que falta, com essa "solução"? E, considerando que o atendimento só poderia ser feito por "concursados", como defendem alguns com notável veemência, quem faria o atendimento complementar?

Nesse cálculo que só inclui itens como "contratações" e "salários", não se falou ainda dos custos para vitaminar as instalações da Defensoria Pública. Como a instituição saltará de menos de 30 pontos de atendimento para 360 pontos?  Qual será o custo dessa súbita "expansão", considerando os valores necessários para gastos com pessoal administrativo (pagamento da folha), custeio (luz, telefone, informática, suprimentos, manutenção dos espaços, reformas, etc.) e capital (aquisição de prédios, equipamentos, dentre outros bens) em centenas de pontos de atendimento? Não se pode admitir que defensores públicos concursados trabalhem ao relento, naturalmente. Nem forçá-los a trabalhar por conta própria, sem qualquer estrutura, como pretende fazer a Defensoria Pública com os advogados  que se cadastrarem em seu "edital".

Assim, por qualquer ângulo que se analise o "imbróglio", verifica-se facilmente que não é verdadeira a informação de que, no momento, a Defensoria Pública poderia suportar todo o atendimento sozinha. Até mesmo em sua sede central, na Av. Liberdade, em São Paulo, a Defensoria contava até pouco tempo com 27 funcionários contratados pela OAB para auxiliar no atendimento dos assistidos. Esses funcionários tinham os salários pagos pela OAB, é óbvio. E, como a Defensoria não reconhece qualquer dívida resultante do convênio, essa será mais uma conta a ficar "pendurada", aguardando o desfecho de uma longínqua ação judicial para que a OAB possa reaver o que gastou.

Nesse cálculo que não fecha, nem é possível levar em conta alguns comentários hostis, que só podem ser atribuídos à jovialidade e inexperiência de alguns, de que o atendimento proporcionado pelos Defensores concursados seria "de melhor qualidade" do que o prestado pelos abnegados advogados inscritos no convênio. Se não há hierarquia entre juízes, advogados e membros do Ministério Público, certamente seria ridícula tal discussão, até porque, antes de serem defensores, esses jovens são advogados, ainda que não queiram ser reconhecidos como tal. Se não há lugar para hierarquias, tampouco não se pode admitir "castas" nas carreiras jurídicas.

De mais a mais, tal compra ração sequer é possível, uma vez que os Defensores estão presentes em pouco mais de 20 pontos de atendimento, e os advogados inscritos no convênio atuam em todas as comarcas há 22 anos.

Em geral, a discussão sobre qualquer solução para o atendimento da população resume-se à questão: "onde está o dinheiro?". Nessa crise, as duas partes admitem que existe dinheiro suficiente para o atendimento.

Houve quem assegurasse, do lado dos defensores, que a Defensoria "se vê compelida a celebrar convênios, como o da OAB/SP", como se fosse um favor da instituição, e não um convênio disciplinado em lei. Na verdade, se sequer existe previsão para a contratação imediata de 100 defensores que em teoria poderiam estar em ação no próximo ano, parece prematura para a instituição pretender dispensar a colaboração (já que não é remunerada) da OAB.

Na realidade, a única solução posta em prática - discursos e pretensões à parte - é o polêmico edital de cadastramento de advogados, excluindo o que seria a incômoda atuação da OAB.

Sob roupagem de rígida preocupação com o destino do dinheiro público, o que se pretende instalar é mais um modelo de exploração do trabalho de uma classe no pior estilo do que se convencionou chamar de "capitalismo selvagem". O Estado sabe que São Paulo concentra mais de 200 mil advogados, que disputam um afunilado mercado de trabalho. Ciente disso, há quem pretenda impor condições aviltantes aos advogados.

Em resumo, toda essa discussão reflete, por vias tortuosas, a mesma estratégia utilizada pelo Estado ao utilizar o trabalho de médicos, e suas defasadíssimas tabelas de honorários e calotes constantes a hospitais, mantendo a saúde pública sob constante crise. Também na área da saúde, ninguém duvida de que não faltem recursos (já tivemos a CPMF e já pensam em recriá-la...). No caso do atendimento jurídico, existem receitas provenientes das taxas cobradas pelos cartórios extrajudiciais. Mas o Estado tem o mau hábito de ser um mau patrão, sobretudo quando se trata de prestar atendimento à população carente.

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